quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

A utilidade das gavetas.

Todos temos nossos amores, pavores, fervores. Nossos sentimentos estão tão bem trancafiados em nosso coração que ninguém pode arrancá-los de lá se não nós mesmos. As gavetas da alma, resguardadas às sete chaves, guardam nossos segredos, medos, enganos e devaneios. Cada sorriso e cada lembrança está lá, continuamente presente nas gavetas de nossa memória, mas como fazemos com a matéria, assim devemos fazê-lo com o espiritual. Organizar as gavetas. Limpá-las, jogar fora o que está corrompido, as peças que não encontraram seus encaixes (isso se até o final da limpeza não os achares, pois não se pode correr o risco do desencontro das peças pela segunda vez), os pedaços de um coração antigo, as embalagens que só serviram de máscaras por tantos e tantos anos, as dores que ocupam gavetas inteiras e um espaço terrivelmente sombrio. Remexa nas gavetas. Procure, mas procure sem medo. Aliás, desafie-os. Muitos ficaram tão bem guardados que é difícil encontrá-los novamente, e há receio em ter de fechar os olhos na hora de encará-los, mas seja forte. Já encaraste outros medos, aqueles escondidos um dia terão de se revelar. Vá, tire-os do fundo da gaveta, limpe-o, está empoeirado e doente. Cure-o. Ensine-o a voar, a seguir sem olhar para trás. Fixe seus olhos nas traições, e pare de lastimar o tempo aparentemente perdido e veja os bens que a vida lhe trouxe. Pare de querer culpar o mundo pela guarnição das tuas dores afirmando calúnia. Engana-te quando pensas que foste traído, pois quem idealizou foste tu. Deixe algumas dores em cima da penteadeira, elas podem servir de espelhos para que possamos acertar nas próximas vezes, e para podermos ver o que fomos um dia. Mas há algumas mágoas que podem continuar guardadas nas gavetas, apenas organize-as, enfileire-as e entenda que não há como arrancá-las da sua vida, elas já criaram raízes no teu ser e não há força que as faça morrer, uma vez que são necessárias. Agora, finalmente, preencha suas gavetas. Coloque lembranças com cheiros de flores, mas não as deixe murchar, tampouco morrer de esquecimento. Arrume, perfume, dobre. Literalmente, dobre. Dobre as alegrias, dobre os amores, dobre até mesmo o tempo, mas saiba que dobrando as causas, dobram também as consequências. Limpe bem as gavetas antes de preenchê-las, deixe-as arejar, e que o vento leve consigo os resquícios da pessoa velha. Temos que nos refazer quase todo tempo, afinal. Reserve um lugar para as decepções, cedo ou tarde elas aparecerão, e lá vamos nós para mais uma limpeza. Há apenas uma coisa que não podemos esquecer: algumas gavetas são tão inconstantes que mal a fecharemos e já estarão totalmente bagunçadas. É o ser humano, é o coração do ser humano, completamente desnorteado e sem rumo. Essas gavetas são as mais divertidas. Por elas que ainda voltamos e pensamos que podemos fazer diferente e que, um dia, tudo será organizado e controlado, e assim mudaremos o mundo. Ou ao menos o nosso mundo. Agora, se as gavetas estão chaveadas, procuremos então a senha dentro de nós mesmos. Se você ainda não sabe, é melhor descobrir, antes que a bagunça esteja grande demais para que a porta consiga se abrir.

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