sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Coração de cristal líquido.

São realmente experiências alucinantes cada dia dessa era em que estamos mergulhados. Um fluido complexo e estranho, novo a cada dia. Um mundo todo de conta nas telas dos computadores, dos celulares, dos terminais bancários. Tudo distante demais para essas mãos humanas.
Um teclado, uma poesia que o mundo inteiro conhece. Sem cadernos, sem folhas manchadas de café. Ah, quem dera que a intimidade existisse ainda hoje! Mas ela está cada vez mais esquecida, no fundo do baú de nossas corriqueiras lembranças, cheia de pó e entrelaçada com a inocência e as fantasias de carnaval da infância. Tudo à toa, tudo à toda, todo mundo na hora do rush.
É de repente. Vi que na vida da gente tem uma série de detalhes que, ainda que tão singelos, tornam-se muito mais que gigantes. Vida verde e magestosa. Cheia de relances, recauques, ataques (atômicos) de sentimentos. Explosões que deixamos passar. Porque é bom fazer logoff do mundo real, às vezes.
Às vezes.
Quanto se perde e quanto se ganha nessa dança cheia de malabarismos entre a realidade e o html? Oh, quão bom seria se tudo fosse um só!
Mas nem mesmo nós somos o que somos nos dois mundos. Por vezes, se separam tão claramente que causam dúvida e loucura nos próprios autores da história. Esses mundos de conta gostam de confundir, de desorbitar os conceitos e os fatos. As coisas tangíveis tornam-se obras raras em nosso universo insistentemente escancarado. Brutalmente banalizado.
A boca fica muda, as gargalhadas são transcritas pra caixa de texto. A voz no telefone... Cadê, meu amor? Cadê a sua voz abafada, a sua risada doce no telefonema no dia do meu aniversário? Uma carta de menina, com o coração no pingo do "i", isso tudo que embarcou num passado tão desconhecido, isso tudo parece que não volta mais.
"Navegar é preciso, viver não é preciso." Navegar em outras casas, em outras realidades, pra bem longe de onde está o seu lugar, aquele perto que fica tão mais longe! Começo a desconfiar que viver é mais preciso, então. Nem mesmo o "navegar" de Fernando Pessoa é mais o mesmo. Reviravolta, chega de se revirar.
Viver é preciso, navegar não é preciso.

domingo, 11 de setembro de 2011

A espera turva.

Sentara-se como sempre no banco costumeiro, pois voltava do mesmo lugar de sempre. O expediente torturante do dia acabara. Agora ela pendia sozinha no tempo, que não a estava ajudando.
Esperava o ônibus calmamente, olhando de modo despreocupado para tudo. E então ela viu. O homem de óculos escuros, a expressão dura, o olhar que lhe lançava era pesado como chumbo. Que faz agora? Atenta, tentou encontrar em si alguma maneira de cessar a angústia: "Está me olhando, está me olhando... Fiz eu alguma coisa ao homem? Quero ir para casa. Tenho trabalho a fazer. O homem, o homem."
Resolveu encarar a figura estranha e obscura. Mexeu com precisão na bolsa, arrancou dali um livro e abriu-o onde havia parado. Sorriu, na esperança de desmotivar o homem. Agora passava segurança. Endireitou a postura, mascarou-se com uma expressão gozada, de superioridade. Riu-se sozinha mais uma vez.
E o ônibus foi passando, ela sorrindo. Pensava se o homem sabia seu nome. Se jogaria pela janela um bilhete: "Que moça desafiadora. Será tão destemida a nossa Louise?" Estava perdida em conjecturas.
E quando olhou denovo, o homem havia sumido. O homem que não era homem. Pensou porque uma figura tão particular roubaria o lugar de uma moça simples sentada nos últimos bancos. Mais uma vez criara seus inimigos. As consultas ao oculista iam sendo adiadas e adiadas. Ela juntou o alívio no peito e riu-se, desta vez de felicidade. Dava um valor estranhamente significativo a qualquer liberdade.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Invasões sorrateiras: uma crônica das 3hs da manhã.

Ah, como é triste tudo aquilo que está fora do lugar. Roupa curta no inverno, meninos usando terno, mulher usando bigode. Para mim, soa vulgar tudo o que quer desconstituir as marcas tão bonitas de cada estação, seja ela do tipo que for.
Particularmente, não me apraz quem tenta veronizar o inverno. Não gosto, não. É desnecessário porque frio é pra ser íntimo, fechado, bonito. Quente gosta de ser pra fora, de gritar, de amarelar, avermelhar. E então, eu gosto de cada um a seu modo. Mas essa história de mortificar um para o outro invadir não é nem de longe admirável. 
Gosto do inverno. Do frio, da timidez, da cautela, do ser seu. Não venha com cerveja geladinha nem biquini fio-dental nos meus dias gélidos. Quero ficar só, mas uma solidão com chocolate, cobertores, só... Só o frio e eu.
E quando chegar o verão, vou me jogar com força na piscina e experimentar cangas de todas as cores. Vou ser uma risada só, mas sem cerveja geladinha. Ela é amarga.
E eu quero mesmo que entendam: as coisas são o que são. Nada de Aurélio Júnior, nada de banalizar o que é tão singular. Sem infiltrados. Sem inadequados. Cada um no seu quadrado.