Corria um dia tranquilo, sem
grandes avanços ou recuos, sem memórias tristes ou notícias de parentes
adoentados. A tarde era calma; o ônibus, porém, trupicava no asfalto e seus
passageiros em pé lamentavam em silêncio o pesar do corpo. Estava em pé uma menina;
sentada estava a outra. Olhou-a a moça em pé e pensou consigo no amável banco
que seria seu ao descer da outra menina. Trazia ela um livro na mão, e uma
bolsa preta aparentemente pouco pesada transpassando o tronco. Sem onde pôr o
livro, espremeu-o entre os dedos e o banco, que segurava com força a alça,
procurando ali um tipo de equilíbrio que nem por dentro tinha.
Sentada ia a outra menina,
percorrendo sua imaginação pelas páginas do livro que lia. Duas leitoras se
viam, uma ao lado da outra; não se conheciam, porém. Quem sabe o que traziam em
seus livros? Nem elas. Ainda estavam por descobrir.
O longo e cansativo trajeto
chacoalhara o coração da moça que não tinha o repouso. Seu livro, coitado,
emprestado da biblioteca, trazia na capa uma pinup. Ela amava pinups, e queria
descobrir o enredo que acabara de adotar. A viagem, porém, parecia-lhe cada vez
mais custosa, e o livro já apresentara seu primeiro mal: esmagava seus dedos
com tal força que a moça sentia desde já dores em suas páginas, mesmo sem saber
dos dramas impressos ali. Não entendia o motivo que teria a outra leitora a não
oferecer colo ao seu amado livro.
O tempo transcorreu com a malícia
do cansaço. O automóvel agora ia lotado e a moça que ia em pé dançava em um
ritmo que não conhecia. Aconteceu então. A moça sentada, comovida pelo amor que
unia o livro e a leitora, ofereceu pouso à narrativa, e também aos dedos moídos
e dormentes que os possuíam. Em pé e menos exausta, a leitora agradeceu a
bondade e a aceitou de bom grado. Cessou a dor. O livro voltou ao seu estado de
graça e sua leitora, ao seu estado de contemplação. Ambicionava abrir-lhe as
páginas e encaixar-se em cada palavra pr’ali transcrita. Agradecia a Deus por
sua mão viva e pulsante, agora menos calejada, e demorou-se observando a
leitura da moça gentil que a ajudara. Percebeu ser leitura boa, digna daquela
pausa de seus olhos. Buscou ler algo, em vão: sua miopia dera as caras,
restava-lhe a dúvida. Perscrutou e leu, porém, um trecho: “Rub”. Limitada por
seus próprios conhecimentos, cogitou Rubem Alves. Esqueceu-se.
Andanças e andanças e então
movimentos. A moça sentada, antes absorta em suas leituras, agora movia-se,
readequava-se, como se preparando para despedir-se do lugar. Em pé, a curiosa
observava o livro seu e o outro. Curou-se então; era Rubem Alves, ele próprio
que esteve pousado nas mãos da moça prestativa toda a viagem. Leu o nome
também, mas aí calou-se; deixou o nome pra si. A menina agitada no banco
arrumava a bolsa e cuidava para não largar o livro da outra sujeita. Por fim,
ergueu-se e com um olhar tímido e gentil devolveu à dona o livro. Esta outra se
demonstrou em seu “Obrigada”, quase que num fiapo de voz. Desceu a outra,
sentou-se a que permanecia. Sem pestanejar, abriu o impresso com a gana dos que
não tem de comer. Faminta da história desconhecida, ignorava agora a paisagem
que lhe distraíra todo o passeio.
Eis que parou consigo e pensou:
“Entre vós, há de haver quem se intrigue com este banco. Talvez seja um mal
dele; sentam-se e leem, uma vontade de interpretar repentina como por um choque que recebem. Curioso.”
As duas mulheres, os dois livros
e um banco. Some-se a isso inúmeros personagens singulares e taciturnos,
cansados da jornada e cheios de conflitos e enredos que, se transcritos pra
papel, atordoariam o ônibus e sua tinta pintaria todos os bancos deste de cima
a baixo. As leitoras desfrutam agora de suas histórias. Os espectadores
coadjuvantes contemplavam a cena. Alguém a mais escreveu, e se lerá nas
estrelas as linhas aqui transcritas.